Ao ler diversos comentários e iniciativas sobre assuntos importantes para o desenvolvimento e colocação no mercado de dispositivos médicos, fico preocupado com o que me parece uma aparente confusão sobre tópicos como avaliação clínica, gerenciamento de risco e estado da arte de dispositivos médicos, com uma separação de atividades apenas para processos específicos, que a determinação benefício/risco é parte do processo de gerenciamento de risco ou que a análise do estado atual dos conhecimentos geralmente reconhecido/estado da arte é apenas necessária para a avaliação clínica) que não me parece fazer sentido. Seguem alguns pensamentos iniciais para minha (e possivelmente, sua) reflexão:
- Por diversas razões que eu não vou entrar neste post (mas posso expandir no futuro), os dois aspectos básicos definem se um dispositivo médico pode ser colocado e mantido no mercado são:
- O dispositivo deve ser seguro e eficaz
- O dispositivo não deve comprometer a saúde ou segurança do paciente, usuário ou outros
Para que os dois aspectos acima sejam verdadeiros, também é necessário que:
- Os eventuais riscos associados ao uso do dispositivo devem ser aceitáveis quando balanceados contra o benefício clínico que o dispositivo proporciona aos paciente (visto de uma outra maneira, os benefícios clínicos devem “pesar mais que” os eventuais riscos)
- Os eventuais riscos devem ser compatíveis com um elevado grau de proteção da saúde e da segurança, atendendo ao estado atual dos conhecimentos geralmente reconhecido

Para ser possível que um fabricante demonstre os acima, ele deve, de maneira geral:
- Definir o que significa ser seguro para seu dispositivo
- Definir o que significa ser eficaz para seu dispositivo
- Definir e medir os benefícios clínicos esperados de seu dispositivo
- Definir e estimar os eventuais riscos associados ao uso de seus dispositivos
- Projetar o dispositivo de maneira que os eventuais riscos associados ao uso sejam compatíveis com um elevado grau de proteção à saúde e segurança atendendo ao conhecimento geralmente reconhecido, ou seja, o dispositivo em princípio não pode ser mais perigoso que dispositivos similares ou soluções clínicas alternativas para o mesmo problema clínico, existentes atualmente no mercado
- Comparar os benefícios clínicos esperados com os eventuais riscos estimados, incluindo a maneira como o dispositivo foi projetado para controlar tais riscos, e concluir se os benefícios esperados “pesam mais que” os eventuais riscos
Com isso em mente, é importante lembrar que todo o processo relacionado a transformar uma idéia para resolver uma necessidade clínica em um dispositivo médico industrializável é conhecida como projeto (ou projeto de engenharia, usando o termo técnico mais comum).
- O processo de projeto deve incluir as chamadas entradas de projeto, saídas de projeto, etapas de verificação e validação de projeto, entre outros (os requisitos relacionados são normalmente conhecidos como “controle de projeto”). Além disso, ele inclui ou interfaceia com qualquer outro processo que realize alguma atividade relacionada a projeto, como o gerenciamento de risco em geral, o processo de engenharia de usabilidade, avaliação de segurança biológica (biocompatibilidade) ou a avaliação clínica)

Ao definir as chamadas “entradas de projeto” (que são os requisitos que o produto deve atender), o fabricante deve definir requisitos diversos, como por exemplo, requisitos de segurança, requisitos de desempenho, requisitos de usabilidade, requisitos de marcação, requisitos de embalagem, etc. Além disso, ele também deve decidir como verificar que esses requisitos são atendidos (por ensaios de bancada, em animais, ou outro tipo de avaliação)
- Para definir estes requisitos de projeto, é comum que os fabricantes analisem tanto o histórico do problema clínico, quanto dispositivos similares no mercado, incluindo a evolução dos mesmos. Desconheço um fabricante que não tenha feito isso de alguma maneira, mesmo que simples. Por outro lado, esta avaliação é exatamente uma avaliação do estado atual dos conhecimentos geralmente reconhecido. Na maior parte do tempo, esta avaliação é feita ainda antes do projeto ser iniciado, como parte da análise de viabilidade do projeto
- No caso dos benefícios clínicos, esta análise também deveria ser uma das primeiras atividades de um projeto; no caso de requisitos de segurança, os mesmos devem ser identificados, além da análise citada, também pela aplicação do processo de gerenciamento de risco
O processo de gerenciamento de risco é o processo que analisa (identifica os possíveis riscos), avalia (conclui se os riscos são aceitáveis ou não), controla (define a forma de controlar os riscos inaceitáveis) e monitora (a aceitabilidade de todos) os eventuais riscos de uso do dispositivo. O processo de gerenciamento de risco pode ser entendido como um processo decisório, não de implementação. Por exemplo, a identificação de possíveis riscos usa principalmente as análises feitas durante o projeto, incluindo em particular as entradas de projeto, para concluir quais riscos podem vir do uso do dispositivo. Mesmo no caso dos controles de risco definidos no gerenciamento de risco, quem realmente implementa os controles é o processo mais geral de projeto.
- O processo de gerenciamento de risco de maneira geral não inclui um processo de identificação, mensuração e conclusão sobre benefícios clínicos. Embora uma norma como a ISO 14971 inclua algumas possibilidades relacionadas à justificativa sobre certos riscos em comparação com benefícios (esta é outra confusão histórica que pode ser expandida no futuro), esses benefícios devem ser identificados, mensurados em um processo separado. A chamada “determinação benefício/risco” do dispositivo como um todo, portanto, é uma atividade geral de projeto

O processo de avaliação clínica é um processo de geração, coleta, análise e determinação de dados clínicos do dispositivos (que são definidos como dados de segurança ou eficácia que vem do uso clínico do dispositivo em seres humanos). E de onde vêm as definições de quais dados serão gerados, coletados, analisados e determinados? Novamente, do processo mais geral de projeto. Em outras palavras, o processo de avaliação clínica (que nada mais é que uma implementação específica do processo de pesquisa científica chamado de “revisão sistemática”) trata apenas de dados, mas ele não define os dados em si, ele usa os dados pré-definidos em etapas do projeto do dispositivo.
- Como exemplo específico, regulamentações como a Regulamentação Européia 745/2017 (MDR) requerem que o plano de avaliação clínica do dispositivo especifique o propósito pretendido do mesmo e detalhe benefícios e outros parâmetros. Estas informações não vem da avaliação clínica. Elas vem do projeto (e uma boa parte dos requisitos de entrada de projeto) do dispositivo.

Por fim, um comentário sobre a questão de estado da arte, estado-da-arte, ou o termo que se queira dar para demonstrar o nível “consensuado” do conhecimento atual.
Não temos uma definição do termo em regulamentações de colocação no mercado de dispositivos médicos (no momento, temos uma definição na norma ISO 14971 que foi criada baseada em uma definição de outra norma ISO/IEC). Por exemplo, a Regulamentação Européia 745/2017 (MDR) tem 12 instâncias do termo “estado da arte”. A maior parte destas 12 instâncias indicam que os requisitos devem ser aplicados “considerando”, “baseado no”, “no contexto do” estado da arte. Nenhum destes requisitos indica que os produtos têm que SER estado da arte. Qual o motivo?
Um dos motivos é que a determinação de se um produto É ou NÃO é “estado da arte” não pode ser feita apenas por uma empresa, um organismo notificado, ou mesmo um regulador. Algo “SER” estado da arte implica uma grande gama de interessados concorde que algo é o estado da arte. Mesmo normas técnicas, que são consensuadas pelos envolvidos, não são consideradas “serem” estado da arte, mas “refletirem” o estado da arte (uma discussão interessante pode ser vista no item 3.5 do documento MDCG 2021-5 Rev. 1 Guidance on standardisation for medical devices).

Pela minha experiência, a única situação que eu conheço em que algo é definido como “sendo” estado da arte é no contexto de uma decisão legal relacionada à responsabilidade de produto (product liability) dentro de um processo em que uma empresa está sendo processada por um usuário que acha que foi prejudicado por um produto. Mesmo neste caso, a decisão judicial basicamente pode confirmar se um produto “era” ou “não era” estado da arte quando colocado no mercado ou usado pelo usuário (ou seja, se o fabricante demonstrou que fez o suficiente do ponto de vista de projeto e segurança e que portanto o produto não seria a causa do problema).
Qual o motivo dos comentários acima? Bem, me parece que muita gente hoje tem achado que o “estado da arte” (ou o termo SOTA) é algo novo, e que a análise do mesmo deve ser feita de maneira mega detalhada e aprofundada.
Como comentei acima, as empresas sempre fizeram, de uma maneira ou de outra, uma análise do conhecimento do momento para projetarem seus produtos. Além disso, as regulamentações indicam a necessidade de “considerar” e “se basear no ”estado da arte” para atendimento regulatório. Nenhum regulamentação que eu conheça requer que seja feita uma MEGA ANÁLISE DO ESTADO DA ARTE, nem identifica como qualquer análise deve ser feita.
Portanto, sugiro tomar cuidado com indicações de que uma análise complexa do estado da arte deve ser feita para atender as regulamentações. Elas não tem respaldo nos requisitos regulatórios (infelizmente, certos desenvolvimentos atuais como a futura norma de avaliação clínica ISO 18969 parece focar demais em ter requisitos para se fazer uma análise complexa do estado da arte, e pouquíssimos requisitos para o processo de avaliação clínica/revisão sistemática em si).
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